2 de out. de 2009

vertigo

como se meu corpo
ocupasse lugar impreciso.
cinco centímetros a mais pra lá,
cinco centímetros a mais pra cá.
e no meio disto,
estou eu
sem saber
nem onde começo,
nem onde termino.

desatino matinal

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liberdade não pode ser, em hipótese alguma, ausência de sofrimentos. o completo vazio do não sofrer, talvez, se chame apatia. ou melhor: indiferença. a liberdade, como a vejo, requer sofrimento. e talvez ela seja, então, a própria e humana compreensão da dimensão que esse sofrimento pode alcançar. compreensão, não entendimento. querer entender, já é querer saber demais.

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22 de jul. de 2009

a cultura vale

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nesta próxima quinta feira, 23 de julho, no teatro raul cortez, lula assinará seu aval final para a proposta de vale-cultural que tramita no congresso desde os idos de 2007. o "vale-cultura" consiste na injeção de cinquenta reais mensais aos honorários dos trabalhadores com carteira assinada, cuja soma mensal não ultrapassse cinco salários mínimos.

este vale funcionará nos mesmos moldes do vale alimentação e vale transporte: através do uso de cartões magnéticos em estabelecimentos culturais credenciados (como teatros, museus, cinemas e lojas de livros, cds e dvds). a soma, que é uma das implementações da reformulação da lei de cultura "Rouanet", já vislumbramos, não é muita. talvez, para alguns casos, não seja sequer o suficiente. e não exclui o fato de que inúmeras manifestações artísticas gratuitas (concretizadas na marra, na garra e na força de vontade de seus idealizadores) sejam verdadeiros fracassos de público. contudo, é um ponto de partida. um admirável ponto de partida.

o cidadão brasileiro não precisa apenas de vales para comer e se transportar pelas cidades: ele precisa também é nutrir seu espírito. há dados de que 90% dos brasileiros jamais puseram seus pés em um teatro. o mercado editorial deste país rema e rema na tentativa de se manter de pé com um público consumidor tão restrito. o cinema nacional apenas nos últimos anos é que deu suas primeiras passadas decisivas rumo ao grande público. se nas terras tupiniquins há fome de comida, imagine você, então, de cultura.

pense cá comigo: ampliado o público consumidor de artigos culturais, a injeção de verbas - além de propiciar a renovação da audiência - acabará por fomentar a produção nacional. o mesmo dinheiro que possibilitará a inclusão do trabalhador nacional na cultura de nosso país, também alimentará a produção e reprodução desta cultura. os talentos poderão florescer. são dois pontos alvejados em um tiro só.

a arte e as experimentações estéticas não são apenas "lazer". são fatores substanciais na formação de indivíduos sujeitos de si e de sua existência, com caráter crítico, sensibilidade e consciência - tanto a própria, como a do outro. em um país continental de cultura popular tão rica e frondosa, cheia de vida e peculiaridades, o "ticket cultural" surge como uma luz no fim do túnel.

ainda bem.

já era hora.

17 de jul. de 2009

lendo bukowski

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lendo bukowski, trancada na caverna.
o mundo lá fora tem ruídos demais,
pessoas demais, agitação demais,
uma tola e inútil agitação,
de que eu realmente não quero saber.

bukowski fala demais sobre amor,
talvez porque ele não queira falar
de amor. mas essa mentira
esta sempre
logo
a frente.

minha mãe me liga,
pra reclamar sobre a falta de dinheiro,
diz que o mundo está vindo abaixo,
e eu lhe digo que cada um têm seus problemas.

ela não não entende,
que eu não quero
mais
problemas
dos
outros
sobre
minhas
costas.

um bom escritor pode ter leitores idiotas.
e isso não é culpa sua,
ele nunca sabe quem é que
irá lê-lo.
vomita suas palavras e as imprime.
deixa-as para serem vasculhadas.
por qualquer vagabundo
com tempo
para a leitura.

no livro do bukowski, hino da tormenta,
uma dessas
brochuras baratas,
de editoras baratas,
há um asterisco a lápis assinalando todo
e qualquer erro de edição.

eu penso que só um estúpido
um bestial idiota,
se preocuparia com os pequenos erros impressos
diante de um poema
de bukowski.
desses que,
tão sujos e cínicos,
tão corroídos de verme ,
de sangue,
de bosta
e
de vômito,
que só sabem falar dele
só sabem falar de amor.

tropeços da primavera.


eu caminhava pelas calçadas e cuidava pra não tropeçar: os sapatinhos novos. ventava. um tipo de vento que é violento e morno e que arrancaria do chão uma árvore ou uma placa na maior das sutilezas, pedindo “- com sua licença”. eu caminhava e não tinha pressa. não me importava em chegar. andar ao vento bastava.


e não era primavera porque era agosto, lembro-me que era agosto. mas nada era mais primaveril que o vento morno. já entardecera e a noite agora se impunha progressivamente. senti calores que contestavam agosto. “a-atchim”. dei um espirro desses que eu só tenho em primavera. e também reparei nas flores. andei livre.


eu usava um vestido claro, com algumas estampas e uns babados. não por me gabar, mas estava bonita. e eu nem procurava meu reflexo nas vitrines pra constatar. contente em me sentir bonita, o resto desimportava.aquela beleza não era do tipo de beleza que se vê. é do tipo que se sente. nenhum espelho a comprovaria.


e de repente um desses senhores distintos que voltava do seu trabalho reparou em mim e falou pra si “ - bonita”. e eu ouvi, isso porque me intrometi na vida do senhor, no seu caminho, porque me esforcei em ouvir sua voz, que o intuito dele não era que eu soubesse. e foi como uma gentileza. dessas que as pessoas só recebem na primavera.


continuei o caminho. aonde eu me levaria? nem pensei que o elogio talvez não fosse pra mim. estava pretensiosa e impiedosa. entendam, não era por vaidade, o vente é que me cortava. eu flutuava nas rajadas e já não sentia os sapatos. um outro espirro. e as flores no caminho. é que a primavera não sabe do calendário. espero que ninguém conte pra ela que chegou adiantada.

o segredo de jurema.


Jurema não sabia o que fazer com o tempo que lhe sobrava. o episódio da novela acabou, começou um daqueles filmes violentos, de ação, fricção, ficção. - uma chateação!” - pensou apertando o botão. desligara a televisão e olhava para um nada além do que se vê. à sua frente devia é estar alguma paisagem guardada na memória. daquelas tão arraigadas que podem ser projetadas pela própria íris, como um cinema na parede da sala. bufava suspiros trespassados de ansiedade e olhava para a casa vazia como quem vê a sua frente um túmulo ou um santuário. o silêncio, o silêncio que só tiquetaquear do relógio perturbava, percorria mais um dia seu. Jurema sem louça para lavar, Jurema desfeita desabando no sofá. tudo em ordem, tão limpo e asseado. e agora? José é que não estava lá para estragar.

unhas feitas, um canto se quebrou ainda quando lavava a louça. indo buscar a lixa no banheiro, viu aquele vulto percorrendo o espelho. uma surpresa para Jurema, ter tempo para olhar no espelho, que não fosse pra espanar-lhe o pó. os meninos crescidos, a morte repentina do marido, Jurema acompanhada só de si mesma – e se lá há jeito de viver sozinho quem tão somente viveu para os outros!

lá estava, e aquele borrão revirado que lhe olhava de volta (“-essa sou mesmo eu?”) era ela. se deteve alguns instantes - soluços do tempo refletidos no vidro reflexivo logo adiante - vendo sua imagem, tentando dar-se por conta de que era ela mesma a única alma penada habitando a casa. não tecia comentários de si para si mesma, feito narciso às avessas, contentava-se em ser um dos narcisos que apenas , e só então, descobre que há uma fonte. e via,via-senenhum espelho seria tão sensível para captar o reflexo da tímida palpitação que agoniava o peito de amélia que Jurema tinha.

a mulher, estranha de si mesma (não era dada a desfrutes) catou, no fundo da cômoda, um blush e um batom avermelhados feito o carmim do escárnio. os dois esquecidos e rançosos, com cheiro de um tempo que se foi. sem vaidade já não era. guardara-se a salvo sob um manto branco de virtude por tanto tempo e, já agora, estava também corrompida. luxuriosa, Jurema se pintou, se borrou, se coloriu. havia outra pessoa além da penteadeira. e essa pessoa ria aprovando a luxúria de Jurema.

desajeitada, a mão trêmula errara o traço do delineador. não sem algum embaraço, Jurema vestiu-se. não se diria daquela mulher, assim, na rua: -bonita!”. Eram umas sobras no vestido, um corpo que já não é mais o mesmo no tecido a que os anos não fizeram diferença nenhuma, exceto pelo cheiro de guardado e o leve amarelado de uma fazenda dessas que passam a vida toda esperando para ver o mundo de fora do armário. eram umas rugas, uns vincos, umas marcas que lá estavam anunciando sofrimentos, perdas e ganhos (uma vida, uma vida comum, enfim).

a vaidade inebriava, tornava Jurema certa de si a ponto de não precisar mais do espelho para se certificar de que ela era. que ninguém a visse, ela enxergava-se onde os olhos não chegam. era. seus passos estavam leves. calçou as sapatilhas brancas. e se eu os dissesse que foram os sapatos que a guiaram até porta, sem que Jurema com eles pudesse, vocês acreditariam?

ainda hesitou. seria direito? e se os vizinhos ainda estivessem acordados? Jurema nem percebeu o taco frouxo do salto do sapato quando deu seu primeiro passo. um tropeço, uma vacilação, e Jurema como que reaprendeu a andar. bebeu do vinho da juventude. em seu delírio, estava triunfal, era uma musa a quem a noite reservava delícias e ardores.

aonde iria?

não importava destino. iria. tão musa era e não precisava de rota. sentia a vida como uma corrente de ar que lhe passava por baixo do vestido. uma corrente que controlaria se firmasse seus pés com mais força no chão. Jurema, dentro de si, onde era mais desconhecida que diante do espelho, só sentia que se pudesse andar com seus próprios pés, então, não teria de se preocupar com mais nada.

o último andarilho.



abriria o portão de casa e seguiria andando. desimportava se lá fora encontraria a claridade ofuscante de um dia ensolarado ou se sentiria na pele o arrepio do escuro vento noturno.

seguiria, como quem está ciente de onde quer ir mas ainda não sabe do caminho. e seus passos seriam solitários – sua rota tão imprecisa. andaria. seus ancestrais se mutilaram erguendo-se do chão em que estavam ajoelhados para que, agora, desfrutasse do privilégio de andar. gerações e gerações sacrificadas no exercício de ficar em pé.

e sabia que palavras foram criadas somente para a mentira. mas de seus lábios não escapariam inverdades. calaria-se então. todas as vidas presas no elo de uma corrente que somente se encerrou quando ele deu seus primeiros passos fortes e, mantendo-se à caminho de lugar algum, ergueu sua coluna, tornando-a ereta e direita.

do solitário andarilho, ninguém veria a fronte. da garganta do andarilho, ninguém ouviria um sussurro. veria, em seu precioso mutismo, o mundo além da casa que agora abandonava. enxergaria – no segredo das coisas que nunca poderão ser partilhadas. coisas suas. percorreria seu íntimo e secreto universo, pé por pé, passo a passo, num ritmo lento e lancinante, crescente e sem pressa. sua jornada contrariava premissas: não iniciava no primeiro passo. ela começava num tropeço.